Em seu 37º disco, Odair José convida para Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio

Álbum sai pela gravadora goiana Monstro Discos e encerra trilogia rock iniciada em 2015

***Por Alexandre Matias

(divulgação)

 Um convite à reclusão, um grito pela desobediência, uma conexão planetária. Por mais contraditórios que pareçam os caminhos que se abrem neste trigésimo sétimo álbum de Odair José, eles chegam exatamente ao coração de seu cantor e compositor, um dos autores mais conhecidos da história de nossa música popular recente que conclui seu processo de reinvenção ao encerrar uma trilogia iniciada em 2015. E lá, apesar de escuro, reside a esperança.

O longo título Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio na verdade reúne os nomes três das três faixas que abrem o disco, cada uma delas optando por um rumo: a primeira delas, “Hibernar”, canta sobre a necessidade de isolamento num mundo hiperconectado, quando o excesso de informação mais desorienta que esclarece. “Na Casa das Moças” ataca a hipocrisia da sociedade moderna ao declarar-se fã da transparência da prostituição. Em “Ouvindo Rádio”, ele saúda o meio de comunicação que o tornou conhecido, que mesmo em baixa em tempos de plataformas digitais, segue fiel companheiro de milhões de ouvintes pelo planeta.

O tom desta terceira faixa atravessa todo o álbum. Como o próprio Odair nota, seu prenome é um anagrama para rádio e ele confessa que seus discos são sua própria estação de rádio. Neste novo álbum, isto é reforçado pela figura do locutor interpretado pelo apresentador, cantor e compositor Luiz Thunderbird, uma das participações especiais do disco, que encarna um radialista transmitindo à distância, que faz comentários pontuais sobre as músicas desde o primeiro segundo do disco. O som das frequências sendo sintonizadas também atravessa o álbum, dando a sensação de estarmos pulando de emissora em emissora, buscando uma música que acalente nossas ansiedades.

Musicalmente, o disco encerra uma trilogia rock que Odair iniciou com o disco Dia 16, de 2015, e seguiu em Gatos e Ratos, no ano seguinte. Ele menciona uma retomada à seu período mais autoral, quando não teve de ceder às pressões comerciais e podia fazer discos ousados e que incomodavam até a censura da ditadura militar. Este período foi encerrado com o polêmico, O Filho de José e Maria, lançado em 1977, que o tornou uma espécie de pária para os religiosos brasileiros ao transformar a história de Jesus Cristo em uma ópera rock.

Entre as influências musicais do disco, Odair cita os blues de Keith Richards, dos Rolling Stone, os discos solo de Paul McCartney, os pioneiros do rock Chuck Berry e Little Richards, Jimi Hendrix, Santana, Raul Seixas, The Doors, Eric Clapton, as baladas da gravadora Motown, Aerosmith e até Coldplay, no clima de beira da fogueira da última canção.

Seus discos mais recentes retomam este espírito e Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio vai ainda mais a fundo ao criticar a hipocrisia da sociedade e exaltar o outsider, o forasteiro, o marginal. Ele ri das soluções fáceis para o Brasil propostas pelo novo governo, como o fácil acesso às armas de fogo, convidando o grupo As Bahia e a Cozinha Mineira para cantar em “Chumbo Grosso” e enaltece o viajante solitário com a presença do vocalista da Nação Zumbi, Jorge du Peixe, em “O Imigrante Mochileiro”. Outros personagens e situações atravessam o álbum, como o “Rapaz Caipira”, o “Pirata Urbano”, o “Fetiche” e o “Gang Bang”, além da crítica ao mundo virtual em “Fora da Tela” ou a celebração final de “Liberado”.

Acima de tudo, Hibernar na Casa das Moças Ouvindo o Rádio é uma investigação noturna sobre o comportamento das pessoas, como se Odair fosse uma mistura de detetive, terapeuta e trovador, ouvindo conversas e citando-as como um retrato da sociedade doente em que vivemos hoje. O diagnóstico é perturbador e seus personagens estão todos afoitos, embora o narrador esteja pronto para erguer o farol que iremos seguir. “Não se chega à alvorada sem passar pela noite”, narra o radialista quase no fim do disco, numa forma de seguirmos bravamente esta madrugada pesada que recai sobre estes dias. Odair José já conheceu isso e sabe que iremos atravessar estas trevas – e que o importante é seguir em frente.

***Alexandre Matias é jornalista no site www.trabalhosujo.com.br, curador de música do Centro Cultural São Paulo e do Centro da Terra e diretor artístico

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