No tempo em que eu era velha

(crédito: Marilda Rodovalho)

Marilda Rodovalho (@relatosdeumcoracaobipolar)

Desde criança costumava dizer que havia nascido velha. De alguma forma era como me sentia. Não quero dizer com isso que não tive infância; tive sim. Aliás, consigo me lembrar de momentos maravilhosos da minha infância; das brincadeiras divertidas, e muitas vezes arriscadas com o meu irmão e um amigo querido, Junior. Foram anos maravilhosos vividos ali no Setor Aeroporto, rua 26-A; morávamos em um barracão no fundo de um lote enorme, escorrido para o fundo. Na frente da casa tinha um enorme pé de caju que todos os anos ficava carregado de enormes cajus vermelhos de caldo doce como mel. Atrás ficava a Avenida Independência, e no caso de nossa casa, uma mecânica e depósito com peças de carros velhos.

É importante frisar isso porque uma das lembranças que tenho é sobre construir carrinhos de rolimã, junto com meu irmão e o Junior, para descer a “estradinha”, um caminho cimentado que descia de uma parte do lote (não da rua) até a porta de casa, fazendo um ângulo de noventa graus no meio do caminho. Essa era parte da grande aventura, a outra, era pular o muro de trás da oficina que, devido a inclinação do terreno, do outro lado era bem maior, para “encontrar” rolamentos e fazer os carrinhos. Claro, essa aventura acontecia às escondidas, pois era terminantemente proibida por minha mãe e sem consentimento do dono da oficina; por isso a realizávamos aos domingos. A sensação de perigo, o medo de sermos pegos, a felicidade de conseguir; o frio na barriga, uma delícia.

Em meio às brincadeiras de criança, à diversão e aos momentos inesquecíveis que vivi, havia outra parte de minha vida que não consigo explicar muito bem de onde vinha. Essa outra Marilda que digo ser velha, embora tivesse oito, nove anos, parecia saber de coisas que não havia como saber, fatos que eu não podia ter conhecimento sendo criança, classe média baixa, vivendo na periferia de Goiânia e estudando em um grupo escolar.

Geralmente essa parte de mim aflorava em conversas com minha mãe, nos momentos em que eu deixava as brincadeiras e me dedicava a conversar com ela, na esperança de que enquanto eu estivesse ali, falando, a mantivesse distraída o suficiente para que ela não cumprisse uma de suas promessas de se matar. É, era isso o que ela mais gostava de dizer; que a vida era uma droga, que não havia motivos para viver (meus irmãos e eu não éramos motivos bastante); e que gostaria de estar morta.

Nessas horas, eu deixava de brincar e me sentava no chão, perto de onde ela estava lavando roupa, ou fazendo outra coisa qualquer, e começávamos a conversar. E quase sempre falávamos do mundo, do universo, da vida e do tempo. E eu me lembro bem de dizer que não havia apenas um universo, mas que eram múltiplos universos, em diferentes dimensões, convivendo ao mesmo tempo; mas que não podíamos vê-los por possuírem estruturas diferentes. Eu me lembro de tentar explicar de forma rudimentar, que um universo estava dentro de outro; o que alguns cientistas creem hoje que seja a explicação plausível para a coexistência desses universos; um ocupa os “buracos” vagos do outro e assim sucessivamente, pois estão em densidades diferentes.

Minha mãe ficava fascinada com minhas ideias e eu percebendo que a encantava, então falava mais, de como passado, presente e futuro se fundem em uma mesma espiral temporal (palavras de hoje, naquela época não sei bem como traduzia em palavras, mas a ideia era essa); que a cada escolha feita em determinado ponto da vida, múltiplos caminhos temporais se abriam e mesmo após você escolher, as outras possibilidades tinham continuidade, criando realidades alternativas do que poderia ter sido sua vida. Para ser franca, já não sei se continuo a pensar exatamente dessa forma. Hoje consigo ver as possibilidades se abrindo diante das diferentes escolhas e levando a diferentes desfechos; mas penso que, uma vez feita a escolha, as outras possibilidades se evanescem, se desfazem, pois você fechou a porta a elas e criou um caminho temporal que o levará a determinado lugar. Uma vez feita a escolha, não há como voltar. Só se caminha para a frente.

Muitas vezes me questionava de onde vinham essas ideias. Perguntava para minha mãe e ela também não conseguia me responder. Aos poucos parei de me preocupar com isso, não me importava de onde vinham. Com o tempo adquiri gosto por filmes sobre esses temas e também livros que falassem a respeito. Virei fã de ficção cientifica. Não escolhi me graduar em ciências, mas continuo lendo muito. Descobri que a física quântica traz algumas respostas, na verdade, muitas; e que levanta questionamentos que eu já fazia aos oito anos.

O modo como vejo a vida, ou as vidas – acredito em reencarnação e penso nesse mundo como um lugar de aprendizagem e de experimentação – me faz sentir que já estive aqui outras vezes, muitas vezes. Percebo que o conhecimento que eu demonstrava aos oito anos fora adquirido em outra vida. Não sei se deveria ter sido acessado naquele momento, mas o fato é que me ajudava a desviar a atenção da minha mãe dos seus momentos de crise. Naqueles momentos eu sentia que tínhamos algo sobre o que falar que não fosse morte ou coisas assim e era a única forma que eu tinha de ajudá-la.

Hoje reconheço que o Universo é sábio, perfeito. Naqueles momentos de desespero, minha consciência humana, contida no corpo de uma menina assustada e que se sentia sozinha, sem ter a quem pedir ajuda; conseguia recorrer à consciência coletiva que a continha e recebia com amor. Era essa consciência, na forma de Deus e do meu Anjo da Guarda – em quem acredito piamente – que iluminavam minha mente, trazendo de volta um conhecimento adquirido em outra vida, num tempo em que eu já era velha.

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