Beija-flor

Uma homenagem ao Beija-Flor da escritora Marilda Rodovalho, que também era conhecido como Prefeito. (arquivo pessoal)

*** Marilda Rodovalho

Meu pai se chamava Benoni, nome de origem hebraica que significa “filho da minha dor.” Tanto o nome quanto o significado não são bonitos, pelo menos eu não acho; e dizia isso a ele, não pensem vocês que não. Mas ele apenas ria e deixava pra lá, pouco se importando com a opinião minha ou de qualquer outro.

Nunca conheci alguém tão cheio de vida e com tanto amor pela vida como ele, talvez tenha herdado isso dele, gosto de pensar que sim. Alguém que estava sempre sorrindo e buscava ver o lado bom das coisas, mesmo que parecesse não haver nenhum. Sempre disposto a ajudar quem quer que fosse, tratava a todos com cortesia, desde o mais alto político, e ele conhecia alguns, até os garis que varriam a rua lá de casa, não fazia distinção.

Gostava de uma prosa, uma boa conversa, e não havia lugar onde chegasse e logo não estivesse enturmado. No bairro em que morávamos, recebeu o apelido de Prefeito, justamente por sair cumprimentando a todos como se estivesse sempre em campanha. Mas, na verdade, era sim interessado pelos problemas do lugar e chegou a participar da associação de bairro e comitês.

Aposentado, não conseguia ficar sem fazer nada, então se tornou apontador do jogo do bicho; uma mesinha e uma cadeira na porta de casa e oito horas da manhã lá estava ele anotando as apostas para os jogos, que corriam duas vezes ao dia, às duas e as cinco da tarde, o rapaz da banca passava de moto e levava as apostas.

Inteligente, mesmo sem ter terminado o primeiro grau, fez o equivalente ao sétimo ano hoje, desenvolveu um método que lhe permitia ganhar uns trocados quase todos os dias, se não todos, apostando ele mesmo nas centenas, ternos e outras combinações que já não me recordo mais. O fato é que ele ganhava, pouco é verdade, mas também apostava pouco; só para satisfazer sua vontade e tirar o dinheiro da carne do almoço, como dizia.

Para ele, família em primeiro lugar, sempre. Ainda me lembro de nossas viagens a Anápolis para visitar minha avó materna, que morava sozinha. Viagem que era mais por insistência dele, genro, que de minha mãe, a filha. Os almoços de Natal e aniversários dela eram sagrados, não faltávamos a nenhum, mesmo que fôssemos de ônibus, debaixo de chuva, levando conosco os primos pequenos vestidos com capas improvisadas feitas de sacos de lixo, daqueles azuis; mesmo que meu pai fosse em pé todo o caminho, apesar de termos comprado passagem antecipada, mas o ônibus tivesse lotado assim mesmo. De qualquer modo, íamos. E ele, sem perder a vontade ou a graça. Apesar do mal humor meu e de minhas irmãs.

Difícil mesmo era vê-lo de mal humor. Não que ele não brigasse conosco ou chamasse a atenção, mas ficar de mal humor, emburrado, bravo com algo… era mesmo difícil. Acho que só se desesperava por nós, sua família. Se pudesse nos daria o mundo.

Minha melhor lembrança dele foi em um dia de chuva. Eu devia ter dezessete anos e morávamos no Novo Horizonte, em uma avenida, abaixo da quadra comercial que era de pequenos prédios com lojas embaixo e apartamentos em cima. Da nossa casa, víamos a janela de um desse apartamentos e do lado de fora da janela havia uma gaiola com dois passarinhos. Quando a chuva começou, de repente, os passarinhos se encolheram em um canto assustados e ninguém foi lá tirá-los daquele lugar. Eu comecei a chorar porque a chuva estava forte e temia por eles. Vendo meu desespero, meu pai saiu no meio da chuva, foi até o prédio, tocou a campainha e avisou que a gaiola estava de fora da janela. Eu vi a dona do lugar resgatá-los e então meu pai entrar todo molhado pela porta da sala: “Pronto, não precisa chorar mais, eles estão bem.”

Hoje, enquanto escrevo essas lembranças, vejo que esse foi o mais lindo presente que ele poderia me dar. E porque perdê-lo foi como perder um pedaço da minha alma.

Ah! O beija-flor do título é por algo que ele gostava de dizer sempre que brincando algum de nós, seus filhos, lhe “jogávamos uma praga”, como torcer para o seu time de futebol perder, por exemplo. Ele dizia: “Praga de urubu não pega em beija-flor.”

É isso, meu Beija-flor, quantas saudades!

 

*** Marilda Oliveira (@relatosdeumcoracaobipolar) – É Mestre em Linguística Aplicada, pela UFG e graduada em Letras pela mesma universidade. Professora de língua portuguesa, inglesa e espanhola no ensino fundamental e médio, português instrumental e língua portuguesa na UEG em convênio com a Academia de Polícia Militar de Goiás.
Participou da equipe de elaboração do currículo de língua portuguesa da Secretaria de Estado da Educação de Goiás, bem como da elaboração de material didático pedagógico distribuído à rede.
Ama viajar, ler, ouvir música e estar com seus animais de estimação e companheiros fieis.

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